domingo, 1 de junho de 2014

O que faz Penélope enquanto Ulisses não volta


A guerra de Tróia durou dez anos, e terminou. Voltando para casa, alguns dos heróis morreram na viagem, outros, como Agamenon, tiveram fim trágico, e Ulisses... não chegavam notícias dele. Mais dez anos demorou seu retorno a Ítaca.

Ao partir, contrariado, ele deixara a bela e jovem esposa Penélope com o filho recém-nascido, Telêmaco. Já vimos que Ulisses descende do deus Hermes. E Penélope, quem é?
Penelops significa pássaro, talvez uma ave aquática. A deusa-pássaro é outra forma da deusa-serpente, ambas sendo a expressão da Senhora da Águas, a Grande-Mãe. 
Deusa da Ucrânia
Na Civilização da Europa Antiga, que existiu entre 7 000 e 3 500 a.C. das ilhas do Mediterrâneo até a Ucrânia e da Síria até a Sicília, a Deusa-Mãe era da água: dos rios e do céu, que caía como chuva. Durante essa civilização do Neolítico a Europa estava secando com a retração das geleiras, e imagens de culto ou amuletos com meandros e linhas paralelas (água fluindo), linhas oblíquas tracejadas (chuva) e os olhos da deusa-pássaro protetora da casa e da aldeia ficam mais comuns do que no Paleolítico Superior, quando já existiam, porque as aves aquáticas migratórias eram a principal fonte de alimento dos coletores-caçadores. Algumas imagens associam o leite com a chuva.
A Deusa-Mãe como Deusa-Terra só aparecerá mais tarde, com as invasões dos povos do norte.
Depois que as deusas na Europa foram substituídas pelos deuses dos povos guerreiros, ao sul elas continuaram existindo, na Grécia e em Creta. Dos períodos minóico e micênico há muitas estatuetas da deusa-pássaro e serpente, juntas como deusa dupla, ou separadas. Mesmo na Idade do Ferro a arte geométrica da Grécia mostra os meandros, que representam tanto água como serpente em movimento. 
Atena do Partenon
Atena, deusa cretense, antes de ser guerreira, foi uma deusa-pássaro, protetora do palácio de Cnossos. É representada como uma ave aquática, ou com asas, ou acompanhada por sua ave símbolo, ora um pato, ou garça, abutre ou coruja. E sempre
com serpentes, mesmo na estátua de Fídias para o Partenon, em Atenas que recebeu seu nome e era protegida por ela. Por estarmos agora em uma cultura de guerra, a protetora se torna uma guerreira também. 
Afrodite, nascida em Chipre, é representada com gansos, ela também uma deusa-pássaro. Em Creta, a Ariadne do mito de Teseu era um de seus nomes: A Sagrada.
Deusa-serpente de Creta
Hera, “de Olhos de Vaca” - os olhos da deusa-pássaro – aparece com serpentes nos cabelos ou no corpo, ou com pássaros em torno. Até o mito de como Zeus a seduziu inclui um passarinho.
E-ra, nome pré-grego como essa deusa muito antiga, significa do ar. Ela assume muitas formas, conforme o local, como as várias conquistas de Zeus: Leda, Sêmele, Dânae...
Acabamos de ver a relação entre as três grandes deusas que estão na origem da guerra de Tróia – e que Ulisses encontra sob a forma de ninfas durante sua longa iniciação – e a deusa-pássaro-serpente.

Seria Penélope outra representação da mesma deusa, como ninfa pessoal de Ulisses, e que durante os vinte anos de sua ausência protegeu Ítaca e seu palácio?
E então, o que fez ela durante esses vinte anos?
Pene significa trama, Penélope, aquela que trama. Ariadne, em Creta, fiava. As Moiras fiam. Já se fiava lã de carneiro durante o Paleolítico Superior. A coruja é associada ao fiar desde o Neolítico, ela como as Moiras estão ligadas à morte. O carneiro, como o boi, era o animal de sacrifício à deusa-pássaro neolítica. 
Fiar e tecer são ofício de mulheres, exceto no Egito antigo, onde os homens teciam. Mas a arte de tecer é mais antiga, existia linho em Çatal Hüyük (Anatólia) em 7 000 a.C. Na Ilíada, Helena tece. Na Odisséia, a feiticeira Circe, e Calipso, tecem. Atena, a sábia, ensinou as artes úteis a homens e mulheres, ela mesma tecia trabalhos belíssimos.
Tecer envolve várias ações: depois de fiado,o fio é medido, cortado, a urdidura é montada. Daí começa o trabalho de tecer a trama, o desenho que será visto no tecido. O trabalho, firme, é difícil de ser desmanchado. 
Penélope espera pela volta de Ulisses e protege seu filho que cresce. Os pretendentes à sua mão e ao reino são cento e oito, vivendo no palácio durante anos e pondo em risco a vida de Telêmaco. Penélope continua bela, ela os entretém mas não se decide por nenhum. Às vezes pede aos deuses que a matem, outras pensa se Ulisses voltará mesmo ou se não seria melhor casar com um dos pretendentes. Cria vários estratagemas para adiar a decisão. O mais conhecido é a mortalha que tece de dia para Laerte, durante três anos, e que desmancha durante a noite. Traída por uma das doze criadas infiéis, que se tornara amante de um dos pretendentes, ela – que tivera um sonho sobre a volta do marido – propõe casar com aquele que conseguir manejar o arco de Ulisses.
Teria intuído que Ulisses já estava em Ítaca, disfarçado de mendigo para se preservar? Ou seria outra trama, porque todos sabiam que só Ulisses conseguia manejar seu pesado arco?
Bem, sabemos que Ulisses – Odisseus, o odiado por muitos – matou todos os pretendentes de uma só vez, e então reivindicou seu lugar no leito conjugal. Seria mesmo Ulisses aquele homem, ou um deus disfarçado como acontecera a tantas infelizes mulheres naqueles mitos? Penélope precisava se certificar. 

Ulisses mata os pretendentes
Ordenou que a cama de casal fosse mudada de lugar, e Ulisses protestou que isso era impossível: ele mesmo a fizera, e um dos pés era uma oliveira viva. Então Penélope demonstra sua homophrosyne, que foi depois chamada de fidelidade, e que significa pensamento constante. 
Vinte anos, ou antes dezenove, é o ciclo metônico: o casamento sagrado do Sol e da Lua, quando um eclipse acontece no mesmo ponto do zodíaco. Ulisses e Penélope se unem como representação na Terra do casal divino Zeus e Hera, maduros mantenedores da ordem do reino, tendo passado cada um por sua iniciação
 
Fonte: Marija Gimbutas, The goddesses and gods of old Europe