terça-feira, 19 de março de 2019

A deusa-pássaro

    Sereia, no nosso imaginário, é um ser meio mulher, meio peixe. Mas as sereias que cantaram para atrair Ulisses eram meio mulheres, meio pássaros. 

Ulisses e as sereias. Vaso coríntio. in Kerényi

    Ulisses fôra avisado para não se deixar levar pelo belo canto das sereias, e instruído para tampar com cera os ouvidos de seus marinheiros e se fazer amarrar por eles ao mastro o navio. Os nomes das sereias variam: Himeropa (aquela cuja voz desperta o desejo), Agláope ( a da voz gloriosa), Pasínoe (a sedutora), e outros. Com rosto de mulher, corpo de pássaro cuja parte inferior tem forma de ovo, pés com garras ou como patas de leão, habitam ilhas que parecem floridas, mas ao se chegar lá são um cenário de terror, com corpos humanos apodrecendo. 


    Cantam, tocam lira e flauta, estão ligadas pela música às Musas. São oráculos, sabem tudo que aconteceu e está acontecendo em todo o mundo. Talvez sejam filhas de Perséfone, deusa do mundo subterrâneo, também conhecida com Afrodite dos mortos. As sereias estão ligadas ao amor – por suas flores – e à morte. Levam os mortos para o reino de Perséfone. Se um navio passasse por elas e os marinheiros não as seguissem, elas é que teriam que morrer. Por isto se suicidam após a passagem de Ulisses. 


    Esse é o mito contado, claro, por Homero na Odisséia. E por outros gregos mais ou menos seus contemporâneos. Existem, porém, outras deusas-pássaro. 


    No Neolítico, Ístar, babilônia, e Afrodite, do leste do Mediterrâneo, eram associadas a um conjunto de símbolos que representam a água: pássaro (aquático), peixe, serpente, labirinto. Atena também é associada a aves aquáticas e serpentes. Por isto a Atena de Fídias, que inspirou a estárua da liberdade de Nova Iorque, tem aquela serpente dentro do escudo. E Afrodite, assim como Selene, anda em um carro puxado por gansos. 


    Já em 6 000 a.C. na Grécia continental (Tessália), quando a região estava secando
Tessália. In Gimbutas
devido à mudança do clima com o fim da glaciação, existiam muitas estatuetas da deusa em forma de pássaro, evocando a água. Essa representação da deusa vinha desde o Paleolítico ao norte do Mar Negro, quando o pássaro representava a deusa. Algumas vezes vinha junto com a suástica, símbolo do pássaro voando. Este pássaro podia ser a cegonha, inimiga da serpente: a face diurna, solar, da deusa como vida, e sua face noturna, lunar, da mesma deusa como morte. E assim vemos a origem das sereias, símbolos do amor e da morte. 




Livros consultados: 
Campbell, Joseph: As máscaras de Deus - mitologia primitiva
Gimbutas, Marija: The godesses and gods of Old Europe
Kerényi, Karl: A mitologia dos gregos vol. I



sábado, 9 de fevereiro de 2019

A primeira guerra

    Li em um site que “a guerra acompanha a humanidade desde o berço.”
    

    Não.
Jebel Sahaba


    Matar sim. Guerra não.
    Claro, caçar, matar para comer, o gênero Homo não é herbívoro. Quando e em que circunstâncias aparecem fósseis indicando morte violenta de um ser humano por outro ser humano? 


    Se a pergunta é: quando aparece o primeiro homicídio? 


    Na caverna de Shanidar, no Iraque, um dos esqueletos de Neandertal indica morte por ferimento que atingiu costela e pulmão. A morte não foi imediata, porque a costela está regenerada. O esqueleto é de 35 a 45 000 anos atrás (Paleolítico Médio).
    Em Sungir, na Rússia, um homem foi morto de forma violenta, por arma, e enterrado de forma especialmente elaborada. Este túmulo é do Gravettiano, cerca de 30 000 anos atrás. São os primeiros Homo sapiens da região. 


    Se a pergunta é: quando aparece o primeiro sinal de guerra, ou seja, um grande número de mortes violentas? 


    Na Núbia, Sudão, um cemitério em Jebel Sahaba tinha 61 esqueletos, dos quais 45% morreram de forma violenta. Este cemitério da cultura Qadan indica rituais ao enterrar os mortos. Esta era uma cultura de caçadores do Mesolítico, que colhiam grãos e os regavam, mas ainda não plantavam. Os esqueletos permitem aproximá-los às populações subsaarianas atuais.
    As mortes aconteceram em período de anos, numa fase em que o recuo das geleiras diminuiu e o frio causou seca na região, há cerca de 13 000 anos. Etnias diferentes habitavam a área, e possivelmente quando o clima era melhor as populações cresceram. Uma hipótese é que, ao vir a seca, os recursos escassearam e vieram as agressões. 


    Concluindo: como o Homo sapiens arcaico surgiu na África durante o Paleolítico Médio, há cerca de 200 000 anos, e ao iniciar o Paleolítico Superior – há 50 000 anos - já tinha evoluído para o homem moderno, fica claro que o primeiro sinal de guerra é bem mais recente do que a espécie. 


    Uma terceira pergunta é: quando surgiram os mitos de guerra? 


    Muitos povos têm rituais de purificação para o guerreiro que mata outro homem. Mesmo o caçador que mata um animal tem vários interditos, por exemplo, entre os yanomamis um caçador nunca come o animal que caçou. Se o fizer, a partir daí os animais fugirão dele.
    Conhecemos muitos mitos de deuses da guerra, contados oralmente antes de surgir a escrita. Entre os egípcios havia Sekhmet, deusa da doença e da guerra, e Seth, deus do deserto, da seca e da guerra. Para os sumérios Inana – o planeta Vênus – era a deusa do amor, do sexo e da guerra. O deus romano Marte era deus da guerra e guardião da agricultura. Indicam que a guerra sempre vem junto com alguma outra coisa. 




Fontes:

Shanidar 3 - Neanderthal Skeleton

Why This Paleolithic Burial Site Is So Strange (and So Important)
https://www.sapiens.org/archaeology/paleolithic-burial-sunghir/

Saharan remains may be evidence of first race war, 13,000 years ago
https://www.independent.co.uk/news/science/archaeology/saharan-remains-may-be-evidence-of-first-race-war-13000-years-ago-9603632.html 


La violencia letal en la evolución humana  

http://www.iieh.com/noticias-y-opiniones/noticias-737136/noticias/la-violencia-letal-en-la-evolucion-humana