quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A Maya de Vishnu


Tu que portas o mundo múltiplo do visível e do invisível;

que tens o universo em Teu ventre!

Que cortas o fio da comédia que representamos nesta terra!

Que iluminas a lâmpada da sabedoria; que trazes gozo ao coração de teu senhor, Shiva!

Ó Tu, Rainha Imperatriz da santa Benares! Divina Doadora do Alimento Inesgotável!

Dá-me tua graça e concede-me esmolas!

Sankara, Hino a Annapurna

(“a que transborda alimentos”)


Maya-Shakti é o lado feminino, maternal, protetor, do Ser Supremo. Aceitação espontânea e amorosa da Existência (maya), é a capacidade (shakti) de suportar o sofrimento, a morte, as privações que constituem o transitório, e é a alegria, a beleza e o fascínio da vida. É o enigma, a ambigüidade da manifestação do divino, que no entanto enreda a consciência na urdidura e trama do mundo e passa a vê-lo como o real.

Ramakrishna, no século XIX, contava sua versão de um antigo e conhecidíssimo mito.

Narada, devoto exemplar de Vishnu, recebeu dele a realização de um desejo.
_ Mostrai-me o poder mágico de vossa Maya – pediu. Respondeu o deus: 
_ Segue-me. E em seus lábios de belas curvas pairou um quase sorriso.

Deixaram o bosque agradável onde o eremita vivia e Vishnu o conduziu por uma terra seca que o sol abrasava. Logo ficaram muito sedentos e, quando viram ao longe os telhados de uma aldeia, Vishnu disse: _ Queres ir até lá buscar-me um pouco de água? E ficou à sombra de um penhasco esperando a volta de Narada.

Quando chegou ao povoado Narada bateu na primeira porta, e uma bela moça de olhos encantadores como os de seu divino senhor a abriu. Pasmo, ele esqueceu o que viera fazer. A doce voz o envolveu com boas-vindas. Como num sonho, ele entrou na casa, onde a família o tratou com respeito e afeto, como se ele não fosse um estranho. Algum tempo depois pediu a moça em casamento e se tornou parte da família.

Doze anos depois, com três filhos, tendo morrido o sogro ele se tornara chefe da família, cuidando do gado e das terras. Neste ano as chuvas foram extraordinariamente violentas, os rios transbordaram, torrentes desceram das montanhas, e uma enchente inundou de repente, à noite, o povoado, arrastando as casas e o gado.

Amparando a esposa com uma das mãos, levando dois filhos na outra e o menor sobre os ombros, Narada fugiu às pressas na escuridão total, açoitado pela chuva, escorregando na lama, cambaleando com o redemoinho das águas. A correnteza o arrastava, Narada tropeçou e o filho lhe caiu dos ombros e foi tragado pela noite. Com um grito de desespero soltou os dois filhos maiores para agarrá-lo, mas era tarde. Então a torrente carregou os outros dois, e em seguida o arrancou da esposa, arrastando-o corrente abaixo. As águas o atiraram inconsciente numa praia, sobre uma pequena rocha. Ao despertar abriu os olhos e viu a sua frente um vasto lençol de água lamacenta. Chorou: era o que podia fazer.
Bento Rodrigues, MG, novembro de 2015


_ Filho! - a voz familiar quase fez parar seu coração. _ Onde está a água que foste buscar para mim? Estou esperando há mais de meia hora.

Narada se voltou. Em vez de água viu um deserto brilhando ao sol do meio dia. O deus, as curvas de sua linda boca ainda sorrindo, sem compaixão, perguntou, amável: _ Compreendes agora o segredo da minha Maya!

Ooo

Na Índia, a estrutura de castas, imutável, foi imposta pelos invasores do norte há 3.500 anos. A sabedoria da aceitação da dualidade da vida, e ao mesmo tempo o conhecimento de sua unidade com o divino, tem sua outra face, escura: a desigualdade social perpetuada na aceitação do abuso. Nas últimas décadas, retomando algumas ações iniciadas por Gandhi na luta pela libertação do domínio inglês, surgiram movimentos por direitos ligados à sobrevivência, como o Bijagraha, criado por Vandana Shiva.

Mas a extrema miséria resignada é ilustrada pela cena do documentário Human em que a mulher conta que, quando não têm mais nada para comer, vão procurar nas tocas dos ratos. “E deus é tão bom que nós sempre encontramos alguns grãos.”
Fontes: 
Mitos e símbolos na arte e civilização da Índia, Heinrich Zimmer
Filosofias da Índia, id.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A madona e o menino

Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus.
Minha história, Chico Buarque de Hollanda

Vênus de Dolní Věstonice

O Paleolítico Superior nos deixou muitas imagens da deusa mãe, muitas vezes grávida, algumas poucas com o filho no colo. A figura ao lado veio da Europa oriental, e foi feita há cerca de 30 000 anos. 

A deusa e seu filho continuam pelos tempos, e quando começa a História, a Suméria nos conta de Innana e Dumusi. Aparecendo como seu amante de juventude, ou como seu marido que a decepciona, também se diz dele que foi seu filho. 

Innana se confunde com Ishtar, dos povos semitas que seguiram naquela Mesopotâmia antiga, e seu filho é Tammuz, que cresce e se torna seu amante, e que é morto. Este mito é típico de um povo agricultor que vê o grão brotar, a planta crescer, se reproduzir, e morrer, num ciclo anual.

Mais tarde os gregos contam que Afrodite teve como amante mortal Adônis, e a história é a mesma. Mas os gregos clássicos tiveram as tragédias, e por elas sabemos que Édipo destruiu a si mesmo e a seu reino quando desposou sua mãe. 

O tabu do incesto existe em todas as culturas. Mesmo entre animais a natureza criou mecanismos para dificultar a cópula entre irmãos. 

Joseph Campbell conta um mito sobre o primeiro casal e seus filhos. Eles amaram tanto os filhos que tiveram juntos, que comeram todos. Então o criador diminuiu a quantidade de amor neles, para que a humanidade pudesse existir.

Isto ilustra o arquétipo do amor da mãe pelo filho, visto acima, e seus perigos. O arquétipo é colocado no plano dos deuses, isto é, forças da psique, e o conhecimento dos mitos permite que no plano da vida humana a pessoa consciente administre estas forças psíquicas, sem ceder a seus impulsos. Ver a tragédia de Édipo para não VIVER a tragédia de Édipo.

Conheço - e tenho certeza de que você também - vários casos de mães que "matam" seus filhos homens quando eles crescem e se casam. Parecem querer trazê-los de volta ao útero, como se tivessem sido tomadas pela deusa mãe terra e quisessem o grão de novo inerte em seu seio.

Até Afrodite, no mito de Eros e Psiquê, se comporta como uma sogra-ogra, fazendo tudo pela morte da nora. Na cultura tradicional da Índia, a sogra da esposa é terrível e temida, cruel com freqüência. Dizem os hindus que é para se vingar por ter sofrido o mesmo quando era uma jovem esposa, mas seja como for, o arquétipo está constelado aqui. Lembremos que na Índia tradicional o ego é sempre infantil, já que as regras da casta são imutáveis e inquestionáveis.

E o oposto? Quando Freud esteve na África, visitou um povo onde a jovem se mudava, ao casar, para a aldeia do marido. Se a sogra avistasse o genro da estrada, devia se esconder, não podia ser vista por ele. Freud observou que a sogra ainda era jovem, e podia ser atraente, e este tabu impediria a competição da mãe com a filha pelo genro.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

A deusa-rio

África 

Oiá é a deusa do rio Níger na Nigéria. Este rio incomum atravessa cinco países, incluindo um trecho do deserto do Saara. Iansã é outro nome de Oiá. Entre os iorubás do sudoeste da Nigéria e do Benin, é a deusa deste rio mas também dos ventos e das tempestades. É sincretizada no Brasil com Santa Bárbara e em Cuba com N. Sra. da Candelária. 
Quando Xangô deixou de ser rei de Oió, partiu para o exílio e, de suas três mulheres, apenas Oiá o seguiu. Quando ele se enfiou dentro da terra, ela se tornou o rio que recebeu seu nome. 

Oxum, de Carybé
Outra esposa de Xangô é Oxum, orixá da água fresca, da sedução, da fertilidade e do amor. O rio com seu nome abastece grande parte da Nigéria, até perto de Lagos. 

Quando se encontra com o rio Obá, seu afluente e outra esposa de Xangô, as águas são sempre turbulentas. Obá é uma deusa guerreira, independente, mas ingênua. 

Iemanjá, antes de ser a deusa do mar, era a deusa do rio Ogum.

Anuket

Anuket é a deusa que personifica o rio Nilo, na região do alto Nilo. 









Ásia


Sarasvati
Sarasvati era um rio sagrado da Índia. Corria, há 10 mil anos, onde hoje é um deserto no Paquistão. A deusa Sarasvati, também conhecida como Vac, a deusa da palavra, mais tarde se torna a deusa da música e das outras artes, da cultura, do conhecimento, e shakti de Brahma. 


O que resta, depois que mudanças no clima desviaram outros rios da região para as bacias do Indo e do Ganges, é um rio intermitente, mas a civilização do vale do Indo, contemporânea e tão importante quanto as da Mesopotâmia e do Egito, e que teve mais de 100 cidades, desenvolveu-se às suas margens. Dela ficaram os dravidianos, que habitam o sul da Índia.
Ganga


O fim desta civilização, também chamada harapeana, entre 1900 e 1300 a.C., deslocou o centro da cultura da região para a bacia do rio Ganges. 

Em uma de suas encarnações Vishnu resolveu medir o universo, e para isso marcou com a unha do dedão do pé esquerdo um buraco no chão. Dele jorrou a água do oceano cósmico, formando o rio Ganges, que por ter lavado o pé divino tem o poder de libertar a alma (moksha) de quem nele se banha. A deusa do rio é Ganga - as águas que formam o rio.


Yami, irmã do deus da morte Yama, é a deusa do rio Yamuna, importante no culto de Krishna, que foi carregado através deste rio no dia de seu nascimento, para escapar do tio que pretendia matá-lo para escapar de uma previsão. Nasce no Himalaia, passa por Nova Delhi, e às suas margens fica o Taj Mahal.

Europa

Boann é a deusa irlandesa do rio Boyne, na Antigüidade chamado Bubindas, que ela criou apesar de uma proibição, e que fluiu com tanta violência que causou sua morte. Os nomes do rio e da deusa significam "vaca branca". Gaillimh inion Breasail ou Galva, filha de Breasail, é a deusa do rio Galway, na Irlanda. Seu nome significa "rio pedregoso", e no mito ela se afogou, em um local marcado por uma pedra no meio do rio.

Nabia é a deusa celta dos rios nos territórios que hoje são a Galícia e parte de Portugal e da Espanha. Deu nome a vários rios: Navia, na Galícia, Avia, afluente do Minho, Neiva e Nabão, ambos em Portugal. 

Sequona é a deusa galo-romana - fusão da religião dos gauleses com a greco-romana - do rio Sena. Suas águas eram curadoras. 

Clota é a deusa celta do rio Clyde, na Escócia. Dea matrona, cujo nome significa "deusa grande mãe", é a deusa celta do rio Marne, na França.  Souconna é a deusa celta do rio francês Saône, afluente do Reno. Tamesis é a deusa celta do rio Tâmisa.
Potâmides na Grécia antiga eram ninfas dos rios, e tinham os nomes do rio que habitavam: pactólides, do rio Pactolo na Turquia, aquelóides do rio grego Aqueloo. As potâmides tinham nomes particulares, também. 

Que outras deusas-rio você conhece?