O
mito tem tido, desde o princípio e em todas as culturas, quatro
funções:
- colocar as pessoas em contato com o mistério – o sagrado;
- prover uma cosmologia – a origem do mundo e do ser humano;
- manter o funcionamento do grupo social;
- guiar o desenvolvimento do indivíduo dentro de seu grupo.
No
transcurso da história essas funções passaram a ser das religiões,
da ciência e da política, e algumas delas se perderam.
Os
ritos de passagem têm a função de conduzir a pessoa nos momentos
de transformação da vida, e
cobrem as duas últimas funções da mitologia, acima. Revivem
para o grupo a estrutura social:
os
ritos de nascimento e de morte são para o grupo, para os que recebem
a criança e para os que se despedem do morto. Outros
ritos são os da puberdade, de casamento, de instalação, de
atribuição de nome...
No
rito de puberdade kamayurá, do Parque do Xingu, na primeira
menstruação a
menina
fica reclusa
durante um ano, em que sua comida é especial, para ficar com corpo
de mulher. Aprende a fazer esteira, cestos, todo o artesanato que
precisará para sua vida adulta, e todas as outras habilidades
necessárias. Ao terminar esse ano sua pele está branca pela falta
de sol, ela está diferente, se tornou mulher e sai para casar.
Entrou menina, sai mulher.
Este
é padrão de todo o rito de passagem:
separação
– iniciação – retorno
A
caverna de Trois Frères foi por muito tempo no Paleolítico um lugar
de iniciação na magia da caça. Para chegar ao salão onde estão
as magníficas pinturas é preciso atravessar um túnel de cerca de
50 m, cuja largura e altura são de menos de 40 cm, e onde é difícil
respirar, se tem que rastejar sobre a barriga com os braços do lado
do corpo, como se a pessoa fosse uma cobra. A escuridão e o silêncio
são totais, porque esse túnel só é alcançado depois de se descer
por um caminho longo dentro da caverna.
A
iniciação é uma morte simbólica: a antiga personalidade morre e,
depois de uma série de provas, nasce uma nova pessoa.
Os
aranda do centro da Austrália, no começo do século XX, mantinham
um rito de puberdade para os meninos, que os preparava para a dura
vida do adulto nesse lugar onde a temperatura pode chegar aos 70
graus C.
Os
homens da tribo, que é sempre pequena, fabricam e usam zunidores,
instrumentos que emitem um som amedrontador. As mulheres e crianças
não têm acesso a eles, e os homens contam que o som vem dos
espíritos, que devoram quem desobedece. Em certo momento, os homens,
pintados, aparecem de repente e carregam à força os meninos de
cerca de 12 anos, levando-os para fora da aldeia. Lá eles ficarão
por um mês, passando por provas difíceis e dolorosas, e tendo que
obedecer ordens como a de não olhar o que os homens fazem. Quem
desobedece é morto. Uma das provas é a circuncisão. Ao terminar o
período, a futura sogra do menino, que ao
sair de lá vai
se casar, entrega a ele uma acha de madeira em brasa para que segure.
Durante a iniciação ele recebeu o segredo dos homens, e tem que
mantê-lo. Agora é um homem adulto, tem deveres para com a esposa
que passa a ter, para com a família que vai formar. Para
isso teve que ter seu padrão de menino desestruturado, e um novo
padrão, consciente e inconsciente, foi introduzido nele.
O
rito de passagem guia a inserção da pessoa na sociedade, quem não
se adapta ou é morto, ou é um nada na sociedade. Mas
mesmo durante os longos milênios do Paleolítico existiu o outro
caminho: o do xamã, aquele que segue o chamado individual.
A
jornada do herói é a do indivíduo que atendeu a um chamado
diferente. O xamã pode ter uma doença que indica sua vocação, ou
outro sinal que o torna diferente dos caçadores comuns. O herói
sempre é chamado à aventura.
A
jornada do herói também tem três fases:
separação
– iniciação – retorno
O
chamado à aventura na vida urbana atual é interior, os indícios de
que uma forma de viver terminou, se esgotou, não é mais
significativa. Pode vir através do fim de um emprego, de um
relacionamento, por uma depressão... Pode ser um interesse por uma
filosofia ou prática diferente, como ioga, ou disciplinas medievais
como alquimia...
Sempre
aparece um guia, que nos mitos pode ser um duende, uma aranha,
Ariadne ou Beatriz, Hermes ou Mefistófeles... O guia é adequado à
jornada que será empreendida, mas isso só se
descobre no final. Mefistófeles se apresenta a Fausto: “faço
parte daquele poder que sempre deseja o mal mas sempre faz o bem”.
Para
quem aceita seguir o chamado, o primeiro passo é cruzar o limiar
para o desconhecido, o mundo de prodígios. Nada pode ser explicado
pela razão, pelos conhecimentos que se tinha antes, a vida está em
suspensão, como no sonho. Começa o caminho de provas, que podem ser
a mais diversas, porque o caminho é o do destino de quem o trilha,
não existem dois caminhos iguais.
O
indivíduo como tal nasceu na Grécia. É a marca do ocidente, porque
nas culturas orientais o que conta é a sociedade, não a vontade
individual. Mas antes do nascimento do indivíduo, alguns milênios
antes, nascera o sofrimento durante a vida, com a chegada da guerra
de conquista trazida pelos nômades que tinham o ferro e o cavalo,
vindos dos desertos gelados do norte da Europa e Ásia ou do deserto
seco da Arábia. Eles dividiram as populações entre os que mandam e
os que sofrem.
E
quando surge na Grécia o indivíduo que pensa e decide, encontra já
instalados os cultos de mistério. Pitágoras é
a fusão dos dois: número e música mostram a harmonia do universo,
é necessário fazer parte dessa harmonia, através de uma vida
ascética.
Os
cultos de mistério existiram em vários lugares no mesmo período:
Ísis e Osíris no Egito, Cibele na Síria, Mitra na Pérsia... com
versões diferentes na Índia.
Nos
mistérios gnósticos a iniciação acontecia à luz de tochas, e
incluía a descida simbólica ao mundo ínfero e o encontro com a
deusa dupla, e ainda mais, com o senhor do abismo, que pode ser o
nascido das vezes, Dionísio-Hades, já personificado na própria
Perséfone, senhora do mundo inferior. O retorno à luz, onde a
última iniciação incluía a lira de Apolo, era mais uma vez a
conciliação
dos opostos:
abismo-céu, trevas-luz, mal-bem, imanente-transcendente.
E
então o herói retorna ao mundo, como um iniciado no mistério que
encontrou porque era seu destino. Se tudo der certo, ele agora
transita entre dois mundos, como fazem os xamãs: consciente e
inconsciente, mundo fora e mundo dentro, deus fora e deus dentro.
Mas
aí pode residir outro desafio: criar uma forma de transmitir ao
mundo a dádiva que trouxe, construir uma vida sobre esse significado
revelado.
Fontes:
Joseph
Campbell: O herói de mil faces
As
máscaras de Deus: mitologia primitiva -
mitologia
criativa