“Tu
que portas o mundo múltiplo do visível e do invisível;
que
tens o universo em Teu ventre!
Que
cortas o fio da comédia que representamos nesta terra!
Que
iluminas a lâmpada da sabedoria; que trazes gozo ao coração de teu
senhor, Shiva!
Ó
Tu, Rainha Imperatriz da santa Benares! Divina Doadora do Alimento
Inesgotável!
Dá-me
tua graça e concede-me esmolas!
Sankara,
Hino a Annapurna
(“a
que transborda alimentos”)
Maya-Shakti é o lado feminino, maternal, protetor, do Ser Supremo. Aceitação espontânea e amorosa da Existência (maya), é a capacidade (shakti) de suportar o sofrimento, a morte, as privações que constituem o transitório, e é a alegria, a beleza e o fascínio da vida. É o enigma, a ambigüidade da manifestação do divino, que no entanto enreda a consciência na urdidura e trama do mundo e passa a vê-lo como o real.
Ramakrishna,
no século XIX, contava sua versão de um antigo e conhecidíssimo
mito.
Narada,
devoto exemplar de Vishnu, recebeu dele a realização de um desejo.
_
Mostrai-me o poder mágico de vossa Maya – pediu. Respondeu o deus:
_ Segue-me. E em seus lábios de belas curvas pairou um quase
sorriso.
Deixaram
o bosque agradável onde o eremita vivia e Vishnu o conduziu por uma
terra seca que o sol abrasava. Logo ficaram muito sedentos e, quando
viram ao longe os telhados de uma aldeia, Vishnu disse: _ Queres ir
até lá buscar-me um pouco de água? E ficou à sombra de um
penhasco esperando a volta de Narada.
Quando
chegou ao povoado Narada bateu na primeira porta, e uma bela moça de
olhos encantadores como os de seu divino senhor a abriu. Pasmo, ele
esqueceu o que viera fazer. A doce voz o envolveu com boas-vindas.
Como num sonho, ele entrou na casa, onde a família o tratou com
respeito e afeto, como se ele não fosse um estranho. Algum tempo
depois pediu a moça em casamento e se tornou parte da família.
Doze
anos depois, com três filhos, tendo morrido o sogro ele se tornara
chefe da família, cuidando do gado e das terras. Neste ano as chuvas
foram extraordinariamente violentas, os rios transbordaram, torrentes
desceram das montanhas, e uma enchente inundou de repente, à noite,
o povoado, arrastando as casas e o gado.
Amparando
a esposa com uma das mãos, levando dois filhos na outra e o menor
sobre os ombros, Narada fugiu às pressas na escuridão total,
açoitado pela chuva, escorregando na lama, cambaleando com o
redemoinho das águas. A correnteza o arrastava, Narada tropeçou e o
filho lhe caiu dos ombros e foi tragado pela noite. Com um grito de
desespero soltou os dois filhos maiores para agarrá-lo, mas era
tarde. Então a torrente carregou os outros dois, e em seguida o
arrancou da esposa, arrastando-o corrente abaixo. As águas o
atiraram inconsciente numa praia, sobre uma pequena rocha. Ao
despertar abriu os olhos e viu a sua frente um vasto lençol de água
lamacenta. Chorou: era o que podia fazer.
Bento Rodrigues, MG, novembro de 2015 |
_
Filho! - a voz familiar quase fez parar seu coração. _ Onde está a
água que foste buscar para mim? Estou esperando há mais de meia
hora.
Narada
se voltou. Em vez de água viu um deserto brilhando ao sol do meio
dia. O deus, as curvas de sua linda boca ainda sorrindo, sem
compaixão, perguntou, amável: _ Compreendes agora o segredo da
minha Maya!
Ooo
Na
Índia, a estrutura de castas, imutável, foi imposta pelos invasores
do norte há 3.500 anos. A sabedoria da aceitação da dualidade da
vida, e ao mesmo tempo o conhecimento de sua unidade com o divino,
tem sua outra face, escura: a desigualdade social perpetuada na
aceitação do abuso. Nas últimas décadas, retomando algumas ações
iniciadas por Gandhi na luta pela libertação do domínio inglês,
surgiram movimentos por direitos ligados à sobrevivência,
como o Bijagraha, criado por Vandana Shiva.
Mas
a extrema miséria resignada é ilustrada pela cena do documentário Human em que a mulher conta que, quando não têm mais nada para
comer, vão procurar nas tocas dos ratos. “E deus é tão bom que
nós sempre encontramos alguns grãos.”
Fontes:
Mitos e símbolos na arte e civilização da Índia, Heinrich Zimmer
Filosofias da Índia, id.