quarta-feira, 11 de julho de 2018

A iniciação na caverna


ou

no ventre da baleia



Os meninos presos na caverna na Tailândia fazem aflorar temas míticos comuns a várias culturas. Foram doze mais o treinador, o que já é simbólico.
Caititu

Na jornada mítica do herói, este atravessa o umbral que é o início da aventura. Na caverna - ou no ventre da baleia como Jonas, o Corvo esquimó, ou o Finn irlandês (que inspirou a Joyce o Finnegan's Wake) - o umbral é atravessado para dentro, e o herói entra no útero para se transformar e nascer de novo. Jonas fica 3 dias e 3 noites dentro do peixe, os meninos ficaram 9 dias antes de serem encontrados. Nove é a medida da gestação, coroamento dos esforços, da criação: 9 musas na Grécia, 9 é o número do yang e as direções do espaço na China, 9 círculos do céu e do inferno em Dante, para os maias a Deusa Nove é a deusa da lua cheia.

O evento dramático incluiu a tragédia da morte de Saman Kunan, que mergulhou como voluntário para ajudar as crianças e seu técnico. Ele encarnou o mito soteriológico em seu objetivo da salvar os meninos, e também o da vítima sacrificial, o cordeiro oferecido ao deus em lugar do ser humano.


Rito de passagem

Os ritos de passagem da adolescência são encenados na idade que têm estes meninos. No judaísmo tem o bar mitzvah. Washington Novaes mostra, na série Xingu, a terra ameaçada, um rito de iniciação em que jovens devem atingir um grande ninho de marimbondos. Darcy Ribeiro escreveu sobre um rito em que os jovens deviam ir para a floresta e voltar com uma sucuri viva.

Mas a iniciação na caverna é mais forte e perigosa. Não é para os homens honestos” de que falam os esquimós, e sim para os xamãs. Existe risco de vida. A queda do céu descreve a iniciação de Davi Kopenawa, Raoni contou sua iniciação em entrevista filmada.

Deusa-terra, deusa-lua

Por algum motivo os meninos e o treinador entraram em uma caverna na estação chuvosa: no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira – PETAR – as cavernas ficam fechadas nesta estação.

Como dito acima, a caverna simboliza o útero da deusa-terra. Sua irmã é a lua. O javali – o time se chama Javalis Selvagens – é o animal da deusa-lua. Ártemis, deusa grega da lua, envia um javali para matar o belo Adônis, que a ofendeu. Desde o Paleolítico se encontra a substituição lua → água → serpente. O porco (javali, não um porquinho cor-de-rosa domesticado) substitui a serpente nos mitos da deusa tríplice – a deusa-lua em suas três fases – na Indonésia, Melanésia, Austrália e vizinhanças no Pacífico. Mas também na Grécia aparece nos mistérios de Elêusis, iniciação feminina em honra de Deméter, deusa oriunda de Creta, e de sua filha Perséfone, às quais se junta Hécate, a lua minguante. Este rito inclui a substituição do sacrifício humano pela serpente e pelo porco: figuras humanas em farinha e porcos vivos eram lançados às serpentes do templo, que ficavam em um fosso.
Perséfone sobe


O retorno

No antiqüíssimo mito sumério de Inana, ela desce. Desce, desce... e tem que ser resgatada. Sua volta inspirou um clipe de Michael Jackson.

E os meninos foram resgatados. Dezenas de pessoas arriscaram heroicamente suas vidas, primeiro dois mergulhadores ingleses voluntários, Rick Stanton e John Volanthen, num momento em que não se sabia se seriam encontrados, e se estavam vivos. Depois outros, inclusive Saman Kunan. O que levou essas pessoas a arriscarem suas vidas? Que sentimento os moveu a esta ação perigosa?

O herói realiza sua jornada não para si, mas para trazer ao mundo algo de grande valor, algo como a água da vida, a água que cura. Estes mergulhadores são os heróis que salvaram os meninos, e são mais: trouxeram ao mundo a visão da compaixão, do sacrifício voluntário em favor da vida do outro.

Num tempo de medo, de solidão, de dissolução de valores humanos que pareciam há muito tempo estabelecidos, eles mostraram ao mundo o valor da compaixão. Todos nos beneficiamos de seu heroísmo.

Todos somos gratos.



Fontes dos mitos e símbolos:

O herói de mil faces, Joseph Campbell

As máscaras de deus – mitologia primitiva, idem

Dicionario de símbolos, Chevalier e Gheerbrant

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