Recolhida em 1912 por
Leo Frobenius, no Sudão, e reproduzida por Joseph Campbell em As máscaras de Deus - Mitologia primitiva.
Narrada
perto de Cartum por Arach-ben-Assul, de Darfur, essa história fala
de um tempo onde o Cordofão era verde e próspero. Vê-se aqui a
origem de Sherazade, de As mil e uma noites. Historicamente esse fato
pode ter se passado sob o reinado de Arqamani (Ergamenes), c. 300 a.C.
Quatro
reis governavam um império: um morava na Núbia, outro na Etiópia,
o terceiro no Cordofão e o quarto em Darfur, e o mais rico era o do
Cordofão, que vivia em Napata.
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Jebel Barkal, onde ficava Napata |
Era o rei mais rico da terra, e sua
vida era a mais limitada: todas as noites os sacerdotes olhavam as
estrelas para saber quando, segundo um costume que remontava a uma
época imemorial, o rei deveria ser morto.
Mais
uma
vez chegou esse dia, o rei foi morto em meio a sacrifícios de
animais, o fogo foi apagado, e foi convocado o novo rei: Akaf,
sobrinho do anterior. Mas em seu reino o costume foi mudado – “e
o povo diz que essa mudança foi a causa da destruição de Napata.”
O
primeiro
ato do rei devia ser escolher as pessoas que o acompanhariam na
morte, entre aqueles que lhe eram mais queridos. Far-li-mas era um
escravo presenteado por um rei do Oriente, famoso por sua arte de
contar histórias. “Esse homem me entreterá até a hora da minha
morte, ele será meu companheiro de morte”, disse Akaf. Far-li-mas
disse a si mesmo “é a vontade de Deus”, e não teve medo. Um
menino e uma menina deviam cuidar do fogo, que nunca podia apagar,
permanecer castos, e ser mortos logo após o rei. Sali-fu-Hamr, a
irmão mais nova do rei, foi escolhida pelos sacerdotes, e ficou
apavorada.
O
rei
viveu feliz por um tempo, desfrutando a riqueza, mas um dia
compreendeu que caminhava em direção à morte e teve muito medo. E
ficou deprimido. E mandou chamar Far-li-mas para lhe contar uma
história.
Far-li-mas
chegou, e começou. O rei e seus hóspedes escutaram; esqueceram de
beber, esqueceram de respirar. Porque a arte de Far-li-mas era como o
haxixe, e quando ele acabou estavam todos numa deliciosa embriaguez.
O rei esqueceu seus pensamentos de morte, e ninguém notou que a
noite tinha se passado, o sol já nascera. Desde esse dia Far-li-mas
contava todas as noites suas histórias, a notícia se espalhou pela
cidade, pelo país. Cada noite ele ganhava belas roupas, jóias,
ouro. Ficou rico, a andava pelas ruas com uma tropa de escravos. As
pessoas o amavam e respeitavam.
Sali
pediu
ao irmão que a deixasse ouvir Far-li-mas contar uma história, e foi
atendida. Far-li-mas viu Sali, e por um momento não viu mais nada
além dela. E Sali não viu mais nada além de Far-li-mas.
Tirando
os
olhos de Sali, o narrador começou. Sua narrativa, como o haxixe,
embriagou os homens, e depois os levou ao sono. Todos dormiam, mas
Sali permaneceu desperta, fascinada por Far-li-mas. Far-li-mas
andou na direção de Sali, Sali andou na direção de Far-li-mas.
Eles se abraçaram e ela disse: “nós
não
queremos morrer.” “Mostre-me o
caminho”,
ele disse. “Quando encontrar uma maneira, eu o chamarei”, ela
disse.
Naquele
dia Sali perguntou ao sacerdote supremo: “Quem determina quando o
fogo é apagado?”
“Todas
as noites observamos a Lua e as estrelas, e sabemos quais
estrelas estão se aproximando da Lua”, disse o sacerdote.
“E
se
vocês não puderem ver as estrelas?”, Sali
perguntou.
O
sacerdote respondeu: “Se por uma série de noites não pudermos
vê-las, não seremos capazes de reencontrá-las”.
E
Sali
disse: “As obras de Deus são
magnifícas, mas
a maior não é sua escrita no céu, é nossa vida na terra. Aprendi
isso a noite passada. Deus deu a Far-li-mas o dom de contar histórias
como jamais existiu. Isso é maior que sua escrita no céu.”
O
sacerdote discordou, e Sali disse: “A
Lua e as estrelas você conhece, mas já ouviu as histórias
de Far-li-mas?”
O
sacerdote aceitou o desafio de provar que ela estava errada, e obteve
permissão do rei para os sacerdotes ouvirem as histórias. Mas
pediu autorização para saírem quando a Lua nascesse, para cumprir
seu ofício. Far-li-mas começou, e sua narrativa era como o haxixe,
de modo que quando a Lua surgiu todos, inclusive os sacerdotes,
dormiam profundamente.
Mas
Sali
estava desperta, e disse: “Deixe-me beijar esses lábios dos quais
saem palavras tão doces.” E Far-li-mas disse: “Deixe-me abraçar
essa forma que me deu o poder.” E eles entrelaçaram braços e
pernas e deitaram sobre os que dormiam, e conheceram uma felicidade
de partir o coração. “Você percebe a maneira?” disse Sali, e
eles deixaram o salão.
No
dia
seguinte o sacerdote disse a Sali que precisava ouvir um vez mais
Far-li-mas, e assim foi por muitos dias. E por muitos dias todos
dormiram, menos Sali e Far-li-mas.
Mas
começou a correr a notícia de que os sacerdotes estavam
negligenciando seu ofício, e um cavalheiro visitou o supremo
sacerdote para saber quando seria o próximo ritual. Constrangido, o
supremo sacerdote foi perguntar aos demais quem estava observando as
estrelas. Ninguém respondeu. Então um sacerdote muito velho disse:
“Fomos encantados por Far-li-mas. É a vontade de Deus. Mas se ele
não for um enviado de Deus, deve ser executado. Porque enquanto ele
viver e falar, tudo o escutará.”
O
sacerdote procurou Sali e disse que Far-li-mas tinha que morrer,
porque era contra Deus. Sali respondeu: “Deus mora em meu irmão.
Pergunte o que ele acha.”
E
o
rei
disse de Far-li-mas: “Deus confundiu meu discernimento com o
pensamento da morte, depois através de Far-li-mas tornou a mim e
todos os outros felizes. Demos a ele ricos presentes, que ele
distribuiu em grande parte entre o povo. Ele é rico, como merece, e
o povo o ama, assim como eu.”
“Mas
ele
tem que morrer, porque está perturbando a ordem revelada”, disse o
sacerdote.
“Eu
morro antes dele”, disse o rei.
E
foi
declarado que todo o povo seria testemunha da vontade de Deus nesse
caso.
Sali
disse
depois a Akaf: “O fim da estrada está próximo. Seu companheiro de morte
será quem despertará sua vida. Mas eu o necessito para mim mesma,
para a consumação de meu destino.” Akaf aquiesceu.
Mensageiros
avisaram que Far-li-mas falaria naquela noite na praça, e um trono
coberto com um véu foi erguido para o rei. Milhares de pessoas
vieram. E por último entrou Far-li-mas.
“Sou
um servo de Deus, e acredito que todo mal no coração humano repugna
a Deus. Esta noite, Deus decidirá”, disse. E começou sua
narrativa.
Suas
palavras eram doces como o mel, sua voz era como a primeira chuva de
verão na terra seca, sua língua exalava um perfume mais intenso
que o almíscar, sua cabeça
brilhava como a única luz na noite escura. Sua narrativa era como o
haxixe que faz as pessoas felizes, e logo se tornou como o haxixe de
um sonhador. Com a proximidade do amanhecer, porém, ele elevou sua
voz e suas palavras inundaram os corações como as cheias do Nilo:
para alguns eram pacificadoras, para outros, assustadoras como o Anjo
da Morte. Sua voz ficava cada vez mais poderosa, até que os corações
da multidão se levantaram uns contra os outros, como nuvens de
tempestade, com raios de fúria se chocando. Quando
nasceu o sol e Far-li-mas terminou sua narrativa, os que sobreviveram
viram perplexos todos os sacerdotes mortos.
Sali
disse
a Akaf: “Tire seu véu, mostre-se ao povo, pois o Anjo da Morte os
ceifou por ordem de Deus.” Akaf era
jovem e
belo como o sol nascente, era o primeiro rei que seu povo via. O povo
estava em júbilo.
Desde
aquele dia não houve mais sacrifícios humanos em Napata. Akaf
reinou até a velhice, e foi substituído no trono por Far-li-mas. O
país prosperou. Mas quando Far-li-mas morreu, os reis vizinhos
romperam os tratados para saquear Napata, que sucumbiu. Foi invadida
por bárbaros, e seus últimos filhos vivem hoje em Darfur.